terça-feira, 13 de outubro de 2015

Neutrinos: a verdadeira metamorfose ambulante - Prêmio Nobel de Física de 2015

     A caçada ocorreu em enormes instalações enterradas em grandes profundidades, onde milhares de olhos artificiais aguardavam o momento certo de revelar os segredos dos neutrinos. Em 1998, Takaaki Kajita apresentou a descoberta de que os neutrinos parecem sofrer metamorfose: eles mudam de identidade no caminho até o detector Super-Kamiokande, no Japão. Os neutrinos capturados lá são criados em reações entre raios cósmicos e a atmosfera da Terra. Enquanto isso, no outro lado do planeta, cientistas do Sudbury Neutrino Observatory (SNO), no Canadá, estavam estudando neutrinos vindos do Sol. Em 2001, o grupo de pesquisa liderado por Arthur B. McDonald também provou que esses neutrinos mudam de identidade.
     Juntos, os dois experimentos descobriram um novo fenômeno: as oscilações dos neutrinos. Uma conclusão dos experimentos é que o neutrino, por muito tempo considerado sem massa, na verdade, tem que possuir massa. Isto é de uma extraordinária importância para a física de partículas e para o nosso entendimento do universo.

Interior do Super-Kamiokande. [Imagem: Universidade de Tóquio]

     Nós vivemos em um mundo de neutrinos. Trilhões de neutrinos atravessam seu corpo a cada segundo. Você não pode vê-los nem senti-los. Os neutrinos viajam através do espaço quase à velocidade da luz e quase não interagem com a matéria. De onde eles vêm?
     Muitos foram criados já no início do universo. Outros tantos são constantemente criados em vários processos no espaço e na Terra — de explosões de supernovas a reações nucleares em usinas e decaimentos radioativos que ocorrem naturalmente. Mesmo dentro de nossos corpos, uma média de 5000 neutrinos por segundo é liberada quando um isótopo de potássio decai. A maioria dos neutrinos que atinge a Terra se origina em reações nucleares no interior do Sol. Depois das partículas de luz (os fótons), os neutrinos são as partículas mais numerosas do universo.
     A existência dos neutrinos, proposta pelo austríaco Wolfgang Pauli (Prêmio Nobel em 1945), foi, sobretudo, uma tentativa desesperada para explicar a conservação de energia no decaimento beta, um tipo de decaimento radioativo no núcleo atômico. Em dezembro de 1930, Pauli escreveu uma carta para seus colegas físicos, sugerindo que parte da energia era carregada por uma partícula eletricamente neutra, fracamente interagente e muito leve. Ele quase não acreditava na existência dessa partícula. Supostamente ele disse: "Eu fiz uma coisa terrível: postulei uma partícula que não pode ser detectada".
     Essa partícula extra proposta por Pauli, que parecia um simples artifício, foi inicialmente encarada com ceticismo pela comunidade científica. Porém, o italiano Enrico Fermi (Prêmio Nobel em 1938) a levou a sério. E, em 1932, atribuiu-lhe o nome de neutrino, que significa "pequeno nêutron" em italiano. O brasileiro Mário Schenberg (1914-1990), que trabalhou com Fermi, foi um dos primeiros a utilizar operacionalmente tal ideia, por meio da qual fechou o balanço energético da explosão das supernovas.
     Ainda levaria mais de 20 anos para que o neutrino fosse realmente descoberto. A oportunidade veio na década de 1950, quando os neutrinos começam a jorrar em grande quantidade nas usinas nucleares que estavam entrando em operação. Em junho de 1956, dois físicos estadunidenses, Frederick Reines (Prêmio Nobel em 1995) e Clyde Cowan enviaram um telegrama para Wolfgang Pauli, mencionando que os neutrinos haviam deixado traços nos seus detectores.
     O Nobel de Física deste ano premia uma descoberta que resolveu um enigma de longa data sobre os neutrinos. Desde a década de 1960, cientistas tinham determinado, teoricamente, o número de neutrinos que foram criados nas reações nucleares que fazem o Sol brilhar, mas, ao realizarem medidas na Terra, verificou-se que cerca de 2/3 da quantidade calculada estava faltando. Para onde foram os neutrinos?
     Não faltaram sugestões para responder a esta pergunta. Uma delas foi que algo estava errado com os cálculos teóricos sobre como os neutrinos são produzidos no Sol. Outra das sugestões era a mudança de identidade dos neutrinos. De acordo com o Modelo Padrão da física de partículas, o neutrino faz parte da família dos léptons. Para cada lépton eletricamente carregado (o elétron, o múon e o tau), existe um neutrino correspondente. Portanto, existem 3 tipos neutrinos: o do elétron, o do múon e o do tau. Inicialmente, conhecia-se somente o neutrino do elétron. O neutrino do múon foi descoberto em 1962 e o neutrino do tau apenas em 2000. O Sol só produz os neutrinos do elétron. Mas, se esses neutrinos do elétron se transformassem em neutrinos do múon e do tau no seu caminho para a Terra, o déficit de neutrinos do elétron capturados poderia ser entendido.


     Especulações sobre a mudança de identidade dos neutrinos continuaram apenas especulações até que instalações maiores e mais sofisticadas foram colocadas em operação. Dia e noite, neutrinos foram caçados em detectores colossais construídos em grandes profundidades, a fim de blindar ruídos vindos de radiação cósmica e de decaimentos radiativos espontâneos das redondezas. O Super-Kamiokande entrou em operação em 1996 em uma mina de zinco a 250 km de Tóquio, enquanto o Sudbury Neutrino Observatory, construído em uma mina de níquel em Ontário, começou as observações em 1999. Juntos eles iriam revelar a literal metamorfose ambulante do neutrino, a descoberta premiada este ano.
     O Super-Kamiokande é um detector gigantesco construído a 1000 metros abaixo da superfície da Terra. Consiste de um tanque com 40 metros de altura e 40 de largura, parcialmente preenchido com 50 mil toneladas de água ultrapura. Mais de 11 mil detectores de luz estão localizados no topo, nas laterais e no fundo do tanque, com a tarefa e amplificar e medir flashes de luz muito fracos na água.
     Uma quantidade enorme de neutrinos passa através do tanque, mas, só de vez em quando, um neutrino colide com um núcleo atômico ou um elétron na água. Nessas colisões, são criadas partículas carregadas (múons, a partir de neutrinos do múon, e elétrons, a partir de neutrinos do elétron). Ao redor das partículas carregadas, são gerados flashes fracos de luz azul. Essa é a luz de Cherenkov, a qual surge quando um partícula viaja mais rápido que a luz no meio. Isso não é uma contradição à teoria da relatividade de Einstein, que diz que nada pode se mover mais rápido que a luz no vácuo. Na água, a luz é freada para até 75% de sua velocidade máxima, e pode ser "ultrapassada" pelas partículas carregadas. A forma e a intensidade da luz de Cherenkov revelam qual é o tipo de neutrino e de onde ele vem.
     Durante seus primeiros dois anos de operação, o Super-Kamiokande captou cerca de 5000 sinais de neutrino. Isso é muito mais do que em experimentos anteriores, mas ainda é menos do que era esperado quando os cientistas estimaram a quantidade de neutrinos criados pela radiação cósmica. Partículas de radiação cósmica vêm de todas as direções do espaço e, quando colidem a toda velocidade com moléculas da atmosfera terrestre, resultam em chuvas de neutrinos.
     O Super-Kamiokande capturou neutrinos do múon vindo direto da atmosfera logo acima, bem como aqueles atingindo o grande detector por baixo, depois de terem atravessado todo o planeta. Deveria haver números iguais de neutrinos vindo dos dois sentidos, pois a Terra não constitui um obstáculo considerável para eles. Porém, os neutrinos do múon que chegaram de cima foram mais numerosos do que aqueles que primeiro atravessaram o globo terrestre. Isso indicava que os neutrinos do múon que viajaram uma distância maior tiveram tempo para sofrer uma mudança de identidade, o que não era o caso para os neutrinos do múon que vieram direto de cima e somente viajaram algumas dezenas de quilômetros. Como o número de neutrinos do elétron chegando de diferentes direções estavam em concordância com as expectativas, os neutrinos do múon tinham que ter se transformado no terceiro tipo — os neutrinos do tau. No entanto, os neutrinos do tau não podiam ser observados no grande detector.
     Uma importante peça foi colocada no quebra-cabeça quando o Sudbury Neutrino Observatory (SNO) realizou suas medidas de neutrinos vindos do Sol, onde os processos nucleares só produzem neutrinos do elétron. A dois quilômetros abaixo da superfície da Terra, os neutrinos do elétron são monitorados por 9500 detectores de luz em um tanque com mil toneladas de água pesada. Ela é diferente da água normal, pelo fato de cada átomo de hidrogênio nas moléculas de água possuírem um nêutron extra em seu núcleo, criando o deutério, isótopo do hidrogênio. O núcleo do deutério oferece possibilidades adicionais para os neutrinos colidirem no interior do grande detector SNO.
     Para algumas reações, somente a quantidade de neutrinos do elétron poderia ser determinada, enquanto outras permitiam aos cientistas medir a quantidade de todos os três tipos de neutrinos juntos, sem distinguir entre cada um deles. Como se supõe que somente os neutrinos do elétron vêm do Sol, ambos os modos de medir os neutrinos deveriam dar o mesmo resultado. Então, se o número de neutrinos do elétron detectados for menor que o dos três tipos juntos, isso indicaria que algo tinha acontecido aos neutrinos do elétron durante sua longa jornada de 150 milhões de quilômetros.
     Apesar de mais de 60 bilhões de neutrinos por centímetro quadrado por segundo atingirem a Terra vindos do Sol, o Sudbury Neutrino Observatory capturava somente três por dia durante seus primeiros dois anos de operação. Isso corresponde a um terço do número esperado de neutrinos do elétron que deveriam ser detectados. Dois terços tinham desaparecido. No entanto, a soma, contando os três tipos, correspondia ao número esperado de neutrinos. A conclusão era que os neutrinos do elétron tinham que ter mudado de identidade no percurso.
     Os dois experimentos confirmaram a suspeita de que neutrinos podem mudar de uma identidade a outra. E para que ocorra essa metamorfose, é necessário que os neutrinos tenham massa, caso contrário, eles não podem mudar. Como, então, ocorre essa metamorfose?
     A física quântica é necessária para explicar essa "mágica". No mundo quântico, partícula e onda são diferentes aspectos do mesmo estado físico. Uma partícula com certa energia é descrita por uma onda correspondente com certa frequência. Os três tipos de neutrinos são, então, representados por ondas superpostas, que correspondem a estados de neutrino com massas diferentes.
     Quando as ondas estão em fase, não é possível distinguir os diferentes estados de neutrino entre si. Porém, quando os neutrinos viajam através do espaço, as ondas ficam fora de fase. Ao longo do percurso, as ondas são superpostas em modos variáveis. A superposição em qualquer localidade dá as probabilidades de cada tipo de neutrino ser encontrado. As probabilidades variam de uma localidade a outra, elas oscilam, e os neutrinos aparecem em suas diferentes identidades. Esse comportamento peculiar é, então, devido às diferenças nas massas dos neutrinos. Experimentos indicam que essas diferenças são extremamente pequenas. A massa dos neutrinos é estimada como sendo muito pequena, apesar de nunca ter sido medida diretamente.
     O Modelo Padrão da física de partículas resistiu e passou em todos os desafios experimentais por mais de 20 anos. Mas, o modelo requer que os neutrinos não tenham massa. Ficou óbvio que o Modelo Padrão não pode ser uma teoria completa sobre o funcionamento dos constituintes fundamentais do universo.
     Várias questões importantes sobre a natureza do neutrino precisam ser respondidas antes que novas teorias para além do Modelo Padrão possam ser completamente desenvolvidas. Quais são as massas dos neutrinos? Por que eles são tão leves? Existem outros tipos além dos três já conhecidos? Os neutrinos são suas próprias antipartículas? Por que eles são tão diferentes das outras partículas elementares?

(Fonte: http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/physics/laureates/2015/popular-physicsprize2015.pdf)


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